Por Tiago Quintanilha Nogueira*
Como se sabe, a Lei Federal n. 14.230/2021 realizou profundas alterações na Lei Federal n. 8.429/92 (“Lei de Improbidade Administrativa”). Uma de tais alterações diz respeito à possibilidade de se reconhecer a prescrição intercorrente em tais ações, a teor do novo art. 23, § 5º, que dispõe:
Art. 23. A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei prescreve em 8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência. § 5º Interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da interrupção, pela metade do prazo previsto no caput deste artigo.
Com efeito, como doravante só o Ministério Público pode propor ações de improbidade administrativa (outra “inovação” da Lei Federal 14.230/2021), o Parquet tem sido provocado a opinar sobre a suposta prescrição intercorrente nas demandas que já haviam sido propostas antes de entrar em vigor a referida lei. Primeiramente, convém salientar que, em contradição com a determinação Constituinte de intolerância com a má-gestão e a corrupção, a Lei Federal n. 14.230/2021 – de constitucionalidade questionável em vários pontos – adota uma postura de indiferença com a efetivação dos direitos fundamentais e refratária a uma atuação estatal efetiva de prevenção e repressão aos atos de improbidade administrativa.
Trata-se de evidente concretização do retrocesso social e da proteção deficiente do Estado, a despeito do mandado constitucional explícito de proteção à probidade administrativa e à punição de atos ímprobos (art. 14, § 9º, c/c art. 37, § 4º, da CF/88).
De qualquer sorte, não se cogita de prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa propostas antes de a Lei Federal n. 14.230/2020 entrar em vigor, pois, ainda que admitida a constitucionalidade da malsinada alteração legislativa, é certo que ela não pode retroagir. Explica-se.
Nos termos do novo parágrafo 4º do art. 1º da Lei Federal n. 8.429/92, “aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.”
Pois bem, em que pesem as disposições sancionatórias da Lei Federal n. 8.429/92, em seu contexto não há falar em “retroatividade benéfica” em favor do réu, inclusive não há qualquer ressalva a esse respeito em seu bojo.
Deveras, em nosso ordenamento jurídico a retroatividade da lei só ocorre em caso de norma penal mais benéfica, e isso por ressalva excepcional expressa no inciso XL do art. 5º da Constituição Federal, sem qualquer referência às normas sancionatórias de outra natureza.
Partindo-se da máxima de que “a lei não não contém palavras inúteis”, conclui-se que o constituinte pretendeu excluir do espectro de aplicação do princípio da retroatividade outras normas que não fossem de Direito Penal, pois, do contrário, o teria feito explicitamente.
Gize-se que a retroatividade da lei penal mais benéfica funda-se em peculiaridades únicas do Direito Penal, inexistentes no Direito Administrativo sancionador, a exemplo da “liberdade”. Nesse sentido é a doutrina de Rafael Munhoz de Mello, in verbis:
“Como ensinam Carlos Enrico Paliero e Aldo Travi, é o princípio do favor libertatis que justifica a retroatividade da lei penal mais benigna, considerando-se a gravidade da pena de prisão e os efeitos que tal medida produz sobre o condenado, só superados pelos efeitos da pena de morte. No direito administrativo sancionador não há espaço para o argumento, sendo certo que a sanção administrativa não pode consistir em pena de prisão. […] Por tais fundamentos, não se pode transportar para o direito administrativo sancionador a norma penal da retroatividade da lei que extingue a infração ou torna mais amena a sanção punitiva.” (Temas de Direito Administrativo, vol. 17, “Princípios Constitucionais do Direito Sancionador”. Editora Malheiros, 2007. p. 153-6).
Entendimento contrário implicaria ofensa, outrossim, a diversos primados que regem nosso ordenamento jurídico, como o brocardo tempus regit actum, os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da estabilização das relações jurídicas, da proporcionalidade, da boa-fé objetiva, enfim, não se podendo olvidar, ainda, que “a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito” (CF, art. 5º, XXXVI, LINDB, art. 6º), que é aquele “já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (LINDB, art. 6º, § 1º).
Destarte, não há falar em prescrição intercorrente nas demandas que já haviam sido propostas antes de entrar em vigor a referida lei.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT).
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*Promotor de justiça no Estado do Maranhão.