Por: Gilberto Giacoia
“No Brasil das últimas décadas, há um claro processo em curso de mudança cultural. Não é um simples movimento cíclico, mas uma lenta e auspiciosa rotação de valores. Talvez pudesse até ser melhor identificada pela sugestiva e moderna expressão “transparência Brasil”.
Tanto no plano normativo – com a edição das leis de improbidade administrativa, de responsabilidade fiscal, da lavagem de dinheiro, da ficha limpa à lei de acesso à informação – quanto no hermenêutico, tem-se a nítida impressão do alcance de um estágio irreversível de desenvolvimento ético de modo a se determinar, decisivamente, o resgate da esperança.
Nesse contexto em que se evolui da máxima de “levar vantagem em tudo” ou do “jeitinho brasileiro” pelo perverso vício da impunidade e da ineficácia do sistema penal em relação às pessoas situadas nos escalões superiores da estrutura social, o julgamento do “mensalão” simboliza bem essa passagem de um modelo penal meramente virtual para outro construído e orientado a partir de uma visão muito mais crítica da realidade social.
Seria impensável há vinte anos, independentemente dos atores ou dos magistrados integrantes do Supremo Tribunal Federal, ou mesmo do nome que ocupasse a Procuradoria-Geral da República, chegar-se a tal notável resultado. Porém, quis o destino que um juiz negro, alçado a tal condição por seus próprios méritos, pois sempre crescendo nas dificuldades advindas da discriminação e da exclusão, pudesse ser o grande protagonista dessa cena.
Esse histórico julgamento representa uma virada de página na retomada da cidadania digna no âmbito do sentimento de brasilidade que tanto nos orgulha.
A partir dele se pode acreditar no discurso contra a impunidade para além de seu mero tom retórico, no saneamento da agenda política, no retorno do justo e na retomada do significado ético do poder. Levar ao banco dos réus e restar condenados alguns detentores do poder político, esgarçando as distorções dos bastidores e da teatralidade do que sempre se passou por trás das cortinas, sem dúvida, abre uma esperança.
Devemos, porém, aproveitar o momento para lançar as bases morais do novo Estado brasileiro que tanto se quer.
Não nos iludamos com a efusão de um sentimento de euforia que populariza os juízes ativistas desse novo modelo de justiça.
Do contrário será ele tão efêmero que passará antes mesmo que se aprenda a lição. Tiremos proveito dela o quanto possível.
Com efeito, caminhemos de vez, agora, para fazer irromper um viço ético coletivo, uma perturbante indignação com a violação dos direitos, com os desmandos administrativos, com o afastamento da arena pública pelos conchavos e concertos de alcovas individuais, com o enriquecimento ilícito e fraudulento, com o jogo e a ciranda do lucro fácil e do favorecimento pelas generosas tetas do poder, e, assim, passemos em definitivo a praticar um tão claro mimetismo com a voz das ruas que nos transforme na síntese acabada dos mais legítimos anseios de igualdade substancial.
Que esse julgamento nos inspire a tanto, pois, afinal, devemos continuar acreditando que Deus é brasileiro e nos reservará, por certo, um mundo melhor e mais justo, no qual todos os demais brasileiros, indistintamente, possam ter sua dignidade preservada com a efetiva e plena realização do que tanto aspiram e esperam e que está compreendido na dimensão conceitual de felicidade.
Atente-se, contudo, para os enormes riscos que a violência cria, como reação, objetivando garrotear e controlar os agentes sociais incumbidos desse protagonismo. De fato, quando se pretende romper as teias do clientelismo político que já tanto atrasou a história deste país, fala-se, de novo, em cerceamento do poder de investigar. E na medida em que se pretende afastar desta trincheira de luta uma Instituição com status constitucional maiúsculo, como é por excelência a do Ministério Público, dotada de garantias responsáveis, como bem se sabe, pelo êxito de investigações que têm culminado com a responsabilização de muitos poderosos, tem-se nítida intuição que se está a gestar um novo e duro golpe contra o Estado Democrático de Direito, pois, em última análise, o que se pretende restringir é, com efeito, o direito do povo – organizado em sociedade – investigar.
Aqui, então, impõe-se mais do que nunca a mobilização da sociedade civil organizada, esclarecida e orientada pela imprensa livre deste país e comprometida com a democracia e, note-se, não em seu mero significado semântico, mas, sim, entendendo-a, sem adjetivos, como meio de solução dos conflitos entre o público e o privado ou de conciliação entre os interesses dos cidadãos e os do Estado, enfim, como método eficaz de controle do poder ou de gestão do espaço público de modo a garantir a floração de um novo tempo e a permanente colheita dos frutos da soberania popular por sua majestade moral. Que este leading case – bem sucedido, aliás, graças ao poder suplementar de investigar do Ministério Público – seja o farol a iluminar nossos próximos passos com sua imensurável luz focada para o horizonte que, hoje, nos transcende.
Finalmente, abriu-se a porta. Estamos de chegada e não de partida. Façamos da estrada pela qual chegamos um caminho que independa do caminhante, pois, afinal, se inspira no grande Deus da Justiça.
Gilberto Giacoia* – Procurador-Geral de Justiça do Paraná